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Brasil não pode fechar os olhos para o fentanil como fez com o crack, diz Drauzio Varella
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O médico Drauzio Varella, 79, afirma que “muito provavelmente” o Brasil enfrentará tragédia semelhante a que os Estados Unidos enfrentam hoje com o fentanil, um opioide 50 vezes mais potente que a heroína e 100 vezes mais que a morfina, caso o país não adote estratégias preventivas urgentemente.
“Temos que fazer com o fentanil o que não fizemos com a entrada do crack. O crack nos anos 1980 estava lá nos EUA, em Nova York, em Chicago, no meio da população mais pobre, entre os negros. No Brasil, a gente agiu como se aquilo não existisse, não pudemos educar a população, educar as crianças”, disse ele, em entrevista à Folha.
Segundo o médico, apesar da descrença no potencial de ações preventivas, elas funcionam. “Aí falam: ‘educação não adianta’. É claro que adianta! Essa geração atual fuma menos cigarros do que a minha porque foi educada, nós não. Não podemos fechar os olhos, esperar chegar e começar a morrer crianças por causa da depressão respiratória provocada pelo fentanil.”
Na última quinta (27), agentes da Receita Federal apreenderam 60 cápsulas de fentanil no CTCE (Centro de Tratamento de Cartas e Encomendas dos Correios de Manaus (AM). Em fevereiro, a polícia fez a primeira apreensão do produto no Brasil. Foram 31 ampolas, no Espírito Santo.
“É um opioide, com margem de segurança muito pequena. Dá morte súbita, não dá tempo para nada”, explica o médico. Uma dose de 2 miligramas pode provocar parada respiratória quase imediata.
Além de efeitos alucinógenos e de euforia, a droga é potencialmente letal por afetar a consciência e poder causar paralisia nos pulmões. Para compensar a falta de oxigenação, o coração aumenta o ritmo cardíaco, o que aumenta o risco de uma parada cardíaca.
Conforme a CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças), agência que compila dados de saúde pública nos Estados Unidos, desde 2019 a substância se tornou a principal causa de morte entre pessoas de 18 a 45 anos no país, superando Covid, câncer, suicídios e acidentes de carro.
Em 2022 foram registradas 107.375 mortes por overdose nos Estados Unidos —dessas, 67% envolveram o fentanil, geralmente misturado a outras drogas ilícitas, o que dificulta que os usuários saibam o perigo do que estão consumindo.
“90% do tráfico da substância vêm da China e depois para os cartéis mexicanos que têm as rotas de entrada nos Estado Unidos. Aí começaram a misturar o fentanil com outras drogas, como morfina e cocaína, que ficam muito mais potentes. Eles calculam que 70% da cocaína vendida em Nova York tenha fentanil misturado”, relata Drauzio.
Segundo o médico, o consumo começou entre os usuários “barra-pesada”. “Mas agora já se espalhou entre a garotada. As famílias não têm como controlar. É um comprimidinho que eles colocam no bolso, chegam em casa e tomam.”
Na entrevista, Drauzio também discorreu sobre os rumos da facção criminosa PCC, que neste ano completa 30 anos de existência e que ele viu nascer quando realizava atendimentos no Carandiru.
Para ele, a tese de alguns pesquisadores de que o PCC se transformou num cartel de drogas, com grande chance de virar um grupo mafioso, já é uma realidade.
“Eles entraram para o ramo das drogas e dominaram. O passo seguinte é criar um grupo mafioso como na Itália, que hoje está presente no mercado imobiliário e em outras áreas. Como dominavam o poder político, foram criando uma estrutura.”
Na sua opinião, o PCC seguirá o mesmo caminho, investindo o dinheiro da droga em áreas da economia, como transporte coletivo e imóveis.
Com mais de 30 anos atendendo em centros de detenção, Drauzio se recorda o tempo em que o PCC começou “colocando ordem nas cadeias”, onde recruta os seus soldados do tráfico.
“Você pega um moleque de 19, 20 anos, como tantos que eu conheci na cadeia, e coloca num xadrez com 30 homens. Eles [o PCC] oferecem proteção para o moleque e para a família dele. E a sociedade oferece alguma opção? Nenhuma.”